Ao longo de 30 anos, sempre no mês de outubro, a sede do município de Canudos, na Bahia, vivencia uma Romaria, um evento político em memória do massacre ocorrido naquele território no ano de 1897.
Há exatos 120 anos do massacre do
Estado Brasileiro contra o povo do Belo Monte, a memória de Canudos vem sendo
lembrada este ano em diversos espaços de formação, numa tentativa de fortalecer
no imaginário popular a importância desse fato histórico ocorrido no sertão
baiano e muitas vezes omitido pela historiografia oficial.
Após a realização de seminários,
palestras, feira literária e outras celebrações que vem ocorrendo desde o mês
de junho, aconteceu no período de 19 a 22 deste mês a tradicional Romaria de
Canudos. Nesta 30ª edição, o tema “Canudos: Memória, Caatinga e Vida” conduziu
as discussões entre participantes vindos de estados do Nordeste e de Brasília.
No momento que antecedeu a Romaria houve Encontro das Pastorais Sociais do
Nordeste, reunindo lideranças em busca da resistência materializada no exemplo
do povo do Conselheiro.
Está prevista ainda uma Sessão
Especial na Assembleia Legislativa da Bahia no próximo dia 26 e um evento em
Paris para discutir o marco histórico do Sertão, fato este ainda pouco
conhecido de muitos/as sertanejos/as baianos.
Massacres e potencialidades
Durante a mesa de discussão
realizada no dia 21, o presidente do Instituto Popular Memorial de Canudos –
IPMC, Pe José Wilson Andrade, lembrou a formação do Belo Monte no contexto de
crise econômica, política e social no Nordeste no período do fim da monarquia e
início da República Velha.
Ao descrever esse cenário, José
Wilson menciona o feito de Antônio Conselheiro que motivou algumas dezenas de
famílias próximas à Fazenda Velha, às margens do Rio Vaza Barris, a acolherem
cerca de 800 pessoas que o seguiam em busca de terra para viverem conforme as
promessas religiosas. Essa multidão era oriunda de diversas partes do Nordeste
e ali fundaram o Belo Monte. “Não havia ali uma comunidade socialista no
sentido marxista da palavra, mas havia uma comunidade solidária”, expôs o Pe
Wilson.
A presidenta da Cooperativa
Agropecuária Familiar de Curaçá, Uauá e Canudos – Coopercuc, Denise Cardoso,
que também integrou a mesa, apresentou o histórico e atuação da entidade,
destacando o papel das mulheres que, segundo ela, quebram alguns paradigmas
fincados no sertão e buscam autonomia principalmente a partir da geração de
renda e da ocupação de espaços de decisão, a exemplo da gestão de associações e
cooperativas. Denise também fez uma relação entre o massacre de 1897 no sertão
baiano e o cenário atual do Brasil, onde tem se constatado retrocessos na
garantia de alguns direitos e redução de investimentos, sobretudo em setores
como a agricultura familiar. O diretor da Universidade do Estado
da Bahia – Uneb/Campus Avançado de Canudos, Luiz Paulo Neiva, ao compor a mesa,
apresentou algumas contribuições que a Universidade tem dado no município de
Canudos nesses 30 anos de implementação de ações e projetos. Na oportunidade, o
professor anunciou que em breve será lançada a Universidade Livre de Canudos,
além de reforçar a importância da criação e manutenção do Parque Estadual de
Canudos e outros feitos.
Boa parte da comunidade local
valoriza ações como estas que se propõem a refletir o que ocorreu num tempo tão
recente do ponto de vista histórico. A professora aposentada e religiosa, Dilma
Soares, aponta que “diante de tanto massacre, nós tivemos resistência e Canudos
não morreu”. Ela fala também da importância de “não deixar morrer a história da
nossa cidade, a história dos nossos antepassados que não ficou afogada no
açude, nem enterrada debaixo das águas e do sangue”, defende.
Euclides da Cunha e História Oral
A referência histórica mais
conhecida acerca da história de Canudos é o livro “Os Sertões”, escrito por
Euclides da Cunha, jornalista que acompanhou alguns momentos da chamada guerra.
A serviço das forças militares que objetivavam destruir o Arraial de Canudos, o
escritor registrou o que viu, porém expondo a existência de vencedores e
vencidos. O guia João Batista, sobrinho bisneto de remanescentes do Belo Monte,
porém, ressalta que o povo de Canudos não foi vencido, mas sim resistiu diante
de toda uma conjuntura desigual nos combates, onde o governo tinha um arsenal
bélico e os canudenses tinham apenas armas caseiras, indumentárias de couro e o
conhecimento da Caatinga.
As críticas feitas a obra de Cunha
também mencionam seu olhar limitado para o povo sertanejo, não conseguindo
enxergar a viabilidade da Convivência com o sertão [Semiárido], tão confirmada
na experiência do Belo Monte.
Outros olhares para Canudos, no
entanto, viriam a ser construídas anos mais tarde. Após ler uma reportagem
sobre Canudos na Revista “O Cruzeiro”, o professor e historiador José Calasans
se interessou pela temática e passou a utilizar a história oral como ponto de
partida. A partir disso, começa a constar na historiografia brasileira novos
escritos sobre Canudos e o que pretendia Antônio Conselheiro.
Um dos principais diferenciais
presentes na história que considera a ótica do povo de Canudos é a compreensão
de que não se pode falar em guerra mas sim em massacre. O modelo de sociedade
que se experimentava no Belo Monte incomodou fazendeiros e coronéis da região
os quais estavam perdendo sua mão de obra “pós escravidão”, uma vez que
inúmeras famílias se mudavam para Canudos chamadas pela possibilidade de viver
sem patrão, não passar fome e viver na fé.
O Padre José Wilson cita que o
coronel de Jeremoabo escreveu cartas aos governos, reivindicando medidas para
combater Canudos. Por contestar os abusos cometidos pela República, Conselheiro
passou a ser visto como comunista e isso levou o governo a olhar com
preocupação para o crescimento do Arraial.
Com o aumento da comunidade, a
pequena igreja do Bom Jesus já não suportava a quantidade de fiéis e então
decidiram construir uma maior. A madeira para erguer a nova estrutura estava
encomendada em Juazeiro e ao saber que homens de Canudos iriam buscá-la, logo
se cria um boato de que o Conselheiro estava planejando invadir a cidade às
margens do Rio São Francisco. Isso foi o bastante para a justiça ordenar a
primeira Expedição Militar que encontrou os canudenses em Uauá, onde travaram a
primeira batalha, em novembro de 1986.
Daí em diante foram 11 meses de
intensos combates, num total de três expedições, sendo a última finalizada no
dia 05 de outubro de 1897, com o bombardeio de Canudos feito após o envio de
uma tropa de quase 10 mil soldados. Nesse momento final, conforme os relatos,
alguns/as sobreviventes se renderam e os últimos defensores, menos de cinco,
foram exterminados pelas forças armadas do Brasil, que chegou a envolver
contingente de até 18 estados.
“Quem patrocinou a guerra foi o
Estado”, diz José Wilson, porém ele não deixa de mencionar que houve o
silenciamento da sociedade, da mídia e inclusive de boa parte da Igreja. Este
silêncio ainda persiste até hoje quando a história de Canudos ainda é pouco
estudada na escola convencional e pouco se busca acerca de tudo que ocorreu.
“Aqui na região a história de Canudos é escondida”, pontua Denise, que diz ter
estudado pouco sobre Canudos na escola onde estudou, no município de Curaçá.
O professor Luiz Paulo diz que isso
é consequência também das dificuldades em se fazer memória das lutas populares.
“Estamos acostumados a fazer a história dos vencedores, a história dos vencidos
a gente faz com muita dificuldade”, registra.
Caatinga: convivência e resistência
A história de Canudos é referência
para a defesa da proposta de Convivência com o Semiárido. Segundo relatos orais
levantados por uma série de pesquisas, em Canudos havia fartura, partilha,
vivia-se da pecuária de pequeno porte, da agricultura, do artesanato, do
turismo religioso.
Em apenas quatro anos de existência
(1893 – 1897), o Belo Monte deu exemplo de valores hoje retomados no Sertão do
São Francisco a partir da visão da Economia Solidária, Extrativismo
Sustentável, Acesso à Terra, à Água, etc. Antônio Conselheiro era seguidor do
Padre Ibiapina e do Padre Cícero Romão Batista e isso explica sua preocupação
com o meio ambiente, armazenamento da água da chuva, produção conforme o clima,
etc.
de 15 a 20 mil pessoas – e não teria
resistido a quase um ano de ataques se não houvesse um processo intenso de
Convivência com a Caatinga. O conhecimento deste bioma foi determinante para
resistir aos “dois fogos” e certamente foi o que levou Euclides da Cunha a
escrever a frase que ficou famosa: “o sertanejo é antes de tudo um forte”. A
frase, contudo, carece de questionamento, uma vez que o fato de conviver bem
com a Caatinga não pode isentar o Estado de seu papel garantidor de condições
de vida para o povo sertanejo.
Sem pensar em nenhuma reparação
histórica, ao contrário, com a intenção de apagar a história de Canudos, o
governo Getúlio Vargas planejou a construção de uma grande barragem, o que foi
concretizado pelo Governo Militar em 1969. O açude de Cocorobó cobriu o Vaza
Barris naquele trecho e as ruínas do Belo Monte, expulsando de lá um grupo de
famílias que havia decidido reconstruir a cidade.
A Romaria de Canudos tem buscado
problematizar a história, sem perder de vista o presente e se preocupando com o
futuro. O Padre José Alberto, vigário da Paróquia de Canudos, ressalta que não
se pode, por exemplo, deixar de discutir a necessidade de preservar a Caatinga.
“Trazemos a nossa preocupação com o nosso berço, nosso berço é a Caatinga, onde
fomos criados. A Caatinga ajuda muito a crescer na fé... sua biodiversidade,
sua riqueza cultural, o sustento do povo. Nós trouxemos essa reflexão sobre a
reflexão e sobre a vida”, concluiu o religioso.
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